Ao revirar papeis e livros, encontrei uma entrevista que fiz em dezembro de 1988 com o poeta cubano Heberto Padilla (1932-2000)
Foi uma entrevista feita por troca de correspondência, ainda a uma época em que não se dispunha dos meios digitais.
Na carta que me enviou por correio com as respostas para as perguntas que eu lhe havia remetido, Padilla dizia que gostaria muito de conhecer melhor o Brasil, já que só tivera a oportunidade de passar algumas horas no Rio de Janeiro, a caminho de Buenos Aires, onde iria participar de um feira de livros, em 1985.
Era uma época em que estava para lançar o seu livro La Mala Memoria (Barcelona, Plaza & Janes Editores, 1989) e aproveitava a oportunidade para me pedir que fizesse gestões com editores brasileiros para ver se publicavam por aqui sua obra.
Tentei algumas editoras, mas ninguém editor manifestou interesse.
Relação à distância
Meu relacionamento com Padilla, que sempre foi à distância, deu-se porque já havia algum tempo que eu colaborava com o tablóide literário Linden Lane Magazine, que era editado por sua mulher, a poeta Belkis Cuza Malé (1942), desde 1985, em Princeton, Nova Jersey, Estados Unidos.
Nesta entrevista, que foi publicada no Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo, em 4 de fevreiro de 1989, nas páginas 4 e 5, o poeta faz um resumo das lembranças que guardava do famoso “caso Padilla”, episódio que se deu em 1971, à época em que lançara o livro Provocaciones, poemas.
Antes disso, porém, em 1968, ganhara o grande prêmio da União Nacional dos Escritores e Artistas de Cuba com o livro Fuera del Juego, no qual não ocultara mazelas das autoridades cubanas de então.
Em 20 de março de 1971, seria detido, com sua mulher, acusados de “atividades subversivas”, até que, em razão de pressões internacionais, como confessa na entrevista abaixo, foi solto 37 dias mais tarde, depois de assinar uma “declaração de autocrítica” em que se assumia como “contra-revolucionário”.
A “declaração de autocrítica” de Padilla, porém, haveria de suscitar, na América Latina, América do Norte e Europa, reações de intelectuais como Mario Vargas Llosa (1936), Julio Cortázar (1914-1984), Gabriel García Márquez (1927-2014), Susan Sontag (1933-2004) e Jean Paul Sartre (1905-1980).
Pressões
Diante das pressões, o regime liderado por Fidel Castro (1926-2016) reconsiderou a decisão, procurando dar um fim ao chamado “caso Padilla”.
No entanto, embora liberto, o poeta só teria permissão para deixar o país em 13 de março de 1980, quando então mudou-se para os Estados Unidos, por intercedência do senador norte-americano Edward Kennedy (1932-2009).
Em 1981, lançaria o romance En mi jardin pastan los héroes (Barcelona, Editorial Argos Vergara), que, segundo alguns críticos, seria uma referência jocosa e dissimulada a Fidel Castro, a quem muitos cubanos chamavam às escondidas de El Caballo (O Cavalo).
Essa referência, porém, não está confirmada nesta entrevista.
Casamento
Depois de seu primeiro casamento com Bertha Hernandez, com quem teve três filhos, Giselle, Maria e Carlos, casou-se com Belkis Cuza Malé , com quem teve Ernesto.
Seu casamento com Belkis Cuza Malé terminou em divórcio, em 1995.
Em 2018, Benigno S. Nieto, seu amigo, lançou o livro Heberto Padilla – el poeta que engañó a Fidel Castro (Princeton, Linden Lane Press).
E, em 2022, o cineasta espanhol Pavel Giroud produziu o documentário El Caso Padilla, o que prova que até hoje o assunto ainda repercute.
Para melhor compreensão do texto, passei a entrevista para o português e coloquei onde foi possível as datas de nascimento e morte das personagens citadas.
1 – O que fazias antes da revolução cubana e o que fizeste depois?
Padilla – Antes da revolução, eu trabalhava profissionalmente como jornalista, tendo atuado em jornais, revistas e emissoras de rádio e também na televisão, para a qual escrevi vários programas dramáticos. Ao mesmo tempo, fazia literatura: poemas, ficções, ensaios.
Mas, em 1956, saí de Cuba exilado e estive em Nova York até o triunfo da revolução.
Nesta cidade, incorporei-me à agência Prensa Latina, mas quase de imediato me mudei novamente para Cuba, onde continuei trabalhando com a agência e no jornal Revolución.
Neste último, fui editor da página de noticiário internacional ao mesmo tempo em que colaborava intensamente com o suplemento Lunes de Revolución, que era dirigido pelo escritor Guillermo Cabrera Infante (1929-2005).
Em 1960, fiz parte de uma delegação de jornalistas cubanos que foram convidados para uma viagem a Grã-Bretanha.
Ao meu regresso, depois de uma estada que se prolongou por um mês em que transmiti informações constantes sobre a nossa visita a Londres, fui nomeado chefe dos correspondentes da agência Prensa Latina em Grã-Bretanha. Precisamente em Londres nasceu minha filha María.
Correspondente em Moscou
Depois, e já com duas filhas, fui nomeado correspondente em Moscou da revista Bohemia e do jornal Revolución, conjuntamente com o jornalista Juan Arcocha (1927-2010), e, ao mesmo tempo, também trabalhei no semanário soviético Novedades de Moscú, que havia lançado sua edição em espanhol.
Foi sobretudo este trabalho que me permitiu conhecer de perto a vida soviética em um de seus momentos mais interessantes.
Fiz amizade com numerosos artistas e escritores: Evgueni Entushenko (1933-2017), Bella Akhmadulina (1937-2010), Yuri Kazakov (1927-1982), Yuri Vasiliev (1939-1999), entre outros.
Fiz a primeira antologia de jovens poetas cubanos que se publicou em russo.
Foi uma estada inesquecível e enriquecedora. Lá conheci o comunismo real, suas virtudes e seus defeitos. Era a época de Nikita Khrushchov (1894-1971) e todas as tremendas deformações que o stalinismo criou na sociedade soviética.
Para mim, foi também uma experiência desoladora, pois o entusiasmo da revolução cubana não nos permitia escutar as advertências do XX Congresso do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
A imprensa cubana não fazia eco das mudanças que estavam ocorrendo na União Soviética.
De Fidel Castro para baixo, todo mundo na direção política da revolução continuava enamorado de Josef Stalin (1878-1953). Carlos Rafael Rodríguez (1913-1997) chegou a dizer num famoso discurso que “os antistalinistas de hoje são os anticomunistas de ontem”.
E, durante a revolução, não fui apenas jornalista, mas membro do conselho de direção do Ministério de Comércio Exterior, gerente de uma de suas empresas, representante, com sede em Praga, desse mesmo Ministério nos países socialistas e escandinavos, além de diretor internacional do Conselho Nacional de Cultutra. Fiz muitas coisas, pois numa revolução a gente se converte numa pessoa de múltiplas atividades.
2 – Mas, enfim, o que foi o “caso Padilla”?
Padilla – Foi um erro desnecessário, em primeiro lugar. Tudo surgiu porque o júri do Prêmio Nacional de Literatura da União de Escritores e Artistas de Cuba, do qual faziam parte o poeta cubano José Lezama Lima (1910-1976) e o crítico inglês Jack N. Cohen (?), entre outros, outorgou-me por unanimidade o prêmio de 1971. Por outro lado, ninguém foi declarado finalista.
Meu livro Fuera del Juego foi qualificado pela direção executiva da União de Escritores como um texto crítico, amargo e, por extensão, contra-revolucionário.
Realmente esta era a opinião da política política, não da União de Escritores. Nicolás Guillén (1902-1989), que era o presidente da entidade, negou-se a participar da ofensiva contra a minha pessoa, razão pela qual a polícia decidiu que o vice-presidente da União, José Antonio Portuondo (1911-1996), tomasse o assunto em suas mãos.
De maneira que não houve entrega de prêmio nem recepção, mas apenas ataques dos “duros” no poder.
O livro tampouco seria publicado, fato que também ocorreu com minha mulher, Belkis Cuza Malé, que concorreu no gênero de biografia.
Quando o escândalo chegou aos ouvidos de Fidel Castro, este decidiu que se havia de publicar imediatamente Fuera del Juego com um prefácio em que apareceria a opinião do júri e da direção executiva da União de Escritores.
Dois membros negaram-se a assinar o prefácio – ambos haviam votado a favor de meu livro –, os poetas José Lezama Lima e José Zacarias Tallet (1893-1989).
O livro foi publicado de imediato e o público, que conhecia o escândalo, esgotou a edição em poucas horas.
Paradoxo
O paradoxo nestes fatos é que a maioria dos poemas que mais foram questionados pela polícia política (lá essa polícia exerce funções de vigilância e censura) havia sido publicada na revista Casa de las Américas e no órgão oficial do Conselho Nacional de Cultura, sem que ninguém fizesse qualquer objeção ao seu conteúdo.
A razão do ataque a minha pessoa era outra: eu havia opinado abertamente nas páginas do jornal dos jovens comunistas, Juventud Rebelde, sobre os perigos que cercam qualquer mudança revolucionária.
E, evidentemente, mencionei o stalinismo e defendi meu amigo Guillermo Cabrera Infante dos ataques da polícia política que terminaram por provocar sua saída do Ministério de Relações Exteriores.
Conselheiro Cultural
Naquela época, Guillermo era conselheiro cultural na Bélgica. Naquele artigo, ataquei diretamente a polícia. Isto suscitou a resposta da direção do jornal, mas se permitiu que eu respondesse. Pouco depois, essa direção foi substituída e meu artigo apareceu com o título “Resposta a uma redação de saída”.
Naquele momento eu tinha o apoio de homens como Juan Marinello (1898-1977), Carlos Franqui (1921-2010) e Alberto Mora Becerra (?) e, antes disso, de Ernesto Che Guevara (1928-1967), com quem discuti em mais de uma ocasião sobre os problemas da construção do socialismo em Cuba, mas o poder destes homens foi decrescendo como por arte de magia e Marinello, presidente do velho Partido Comunista, Franqui, fundador do diário Revolución, Alberto Mora, comandante e ministro de Comércio Exterior, e até Guevara, já falecido então, que fora ministro das Indústrias, eram olhados com reserva. Não influíam.
Os “duros” continuavam esperando a oportunidade para impor suas ideias. Naquele momento, sonhavam com uma revolução cultural à maneira chinesa e queriam que o exército tomasse as rédeas da vida cultural. Raúl Castro (1931) converteu-se em chefe deste movimento.
A revista Verde Olivo, órgão oficial do exército cubano, foi a tribuna na qual fui atacado em um extenso artigo intitulado “Las provocaciones de Heberto Padilla”, bem como todo o grupo de escritores e poetas que tinham participado do suplemento literário Lunes de Revolución, considerado liberal e cosmopolita.
A “revolução cultural” entrou em cena.
Os artistas teatrais, os músicos, os pintores e os escritores foram expulsos de seus postos de trabalho sob a alegação de que não “preenchiam os parâmetros” de artistas revolucionários. No lugar deles, ascenderam aqueles que a polícia política queria.
3 – Como viveste depois do “caso Padilla” e como se deu a tua saída de Cuba? Quem te ajudou? Dizem que Gabriel García Márquez teve participação decisiva nisso? É verdade?
Padilla – Vivi em prisão domiciliar durante nove anos. Todos os meus passos estavam seguidos pela polícia. Na ocasião de uma de suas visitas a Cuba, consegui comunicar-me com García Márquez no Hotel Riviera, contei-lhe minha situação e pedi sua ajuda.
Ele, entre outros, ajudou-me.
4 – Como é a sua vida nos Estados Unidos hoje?
Padilla – Aqui faço várias coisas. Dou aulas de literatura latino-americana e escrevo para jornais e revistas.
Tenho uma coluna fixa que se publica nos Estados Unidos e nos países latino-americanos.
5 – Um desses periódicos é o Linden Lane Magazine?
Padilla – Linden Lane é obra de minha mulher, Belkis Cuza Malé. Ela o dirige e diagrama.
É um periódico literário independente que se mantém com subscrições e anúncios. Nós o temos mantido há sete anos.
6 – Como poeta, qual é a principal influência em tua obra? Como era o movimento poético em teu tempo em Cuba?
Padilla – Desde menino, quando aprendi o idioma, a poesia me atraiu consideravelmente.
Minha estada juvenil nos Estados Unidos deve ter tido um papel importante.
Daqui vem o amor por uma poesia concreta, comunicativa.
A poesia que se escrevia na América hispânica, quando eu comecei a escrever meus primeiros textos, era deplorável.
O hermetismo e a grandiloquência governavam a cena literária. Lamentavelmente, não tivemos um Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
7 – Podes nos contar a história de tua novela En mi jardin pastan los héroes?
Padilla – Trata-se de minha segunda novela, escrita há mais de vinte anos. O título é um verso do poeta salvadorenho Roque Dalton (1935-1975).
Não é uma novela de tese; eu diria que é uma novela em que o amor a uma mulher e a uma esperança política se debatem contra o fundo de uma Cuba revolucionária.
A novela foi publicada na Espanha, Estados Unidos, França, Alemanha, Itália e Suécia e tem sido compreendida perfeitamente.
É curioso que na Espanha venderam-se cem mil exemplares e em Buenos Aires trinta mil. Estive no lançamento argentino em 1985 e fiquei surpreso com o fato de a edição ter se esgotado em uma semana.
Mas em Cuba não foi publicado. Os dirigentes políticos cubanos pensam que é uma obra pessimista. Não sei por que.
Eu me baseei em um fato real, na história do ciúme que sente um homem pelo passado de sua mulher.
Ela havia sido amante de um dirigente revolucionário que morre em combate e cuja imagem pública acossa este homem até levá-lo à beira da loucura.
Conheci este casal e fui testemunha da tragédia. Claro, a novela não é só isso. Há outras vidas, outros países, outras aventuras.
O verdadeiro personagem é Havana, a Havana revolucionária com seu turismo revolucionário e suas tensões.
8 – Como está hoje a literatura cubana no exílio? E a literatura em Cuba hoje? Tens contato com ela?
Padilla – O único autor de prestígio que permaneceu em Cuba é Nicolás Guillén, velho, enfermo e marginalizado.
O resto está no exílio. Pensa em Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas (1943-1990), José Triana (1931-2018), Eduardo Manet (1930), Belkis Cuza Male, só para citar alguns nomes.
O que se escreve hoje em Cuba é uma literatura oficial com uma temática exclusivamente política, mas, obviamente, há muitos jovens rebeldes que fazem uma obra clandestina à altura da nossa de melhor tradição. Eu recebo constantemente textos de Cuba que conseguem sair clandestinamente do país e parecem notáveis.
9 – Pensas em voltar a Cuba? Tens esperança? E que te parece como será Cuba sem Fidel? E a sucessão de Fidel? O regime haverá de se abrandar?
Padilla – No ano passado, em Madri, recebi um convite para visitar Cuba.
O primeiro secretário e o conselheiro cultural da Embaixada de Cuba em Madri fizeram uma entrevista com o novelista espanhol J.J.
Armas Marcelo (1946) e pediram-lhe para que me comunicasse o convite.
Em seguida, tive uma entrevista com ambos funcionários na presença de Armas Marcelo.
Os cubanos me disseram que era hora de terminar com o “caso Padilla”, mas eu os adverti dizendo que era melhor esperar que se publicasse meu ultimo livro intitulado La Mala Memoria – que sairá em vários países no mês de março de 1989, pois ali conto em detalhes o que foi verdadeiramente o “caso Padilla”.
Este caso aconteceu há quinze anos e a revolução já completou trinta. Todos temos envelhecido.
A vida cubana também se fez mais velha e trágica.
Em alguns lugares, ao fim de trinta anos, ainda conserva sua aureola romântica, mas os únicos que podem falar daquela revolução são os cubanos que a fizeram e que a sofrem.
Creio na necessidade de justiça social, mas o comunismo não conseguiu impor-se em nenhuma parte.
Na União Soviética e na China compreendeu-se isto, mas Castro segue empenhado numa ortodoxia staliniana que só aumenta o desespero e a miséria de Cuba.
É triste, mas é assim. Se Castro desaparecesse, terminaria com o projeto de um sistema que nunca conseguiu implementar em Cuba. Algum dia saberemos melhor que hoje.
10 – Estás escrevendo uma nova novela ou outro livro de poemas?
Padilla – Bem, depois de La Mala Memoria, que será editada dentro de dois meses, tenho prontos outra novela, Prohibido el gato, e um livro de poemas, Herencias.
Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: [email protected]