A proposta de Reforma do Código Civil em análise no Senado promete alterar profundamente a forma como o patrimônio é distribuído após a morte no Brasil. Uma das mudanças mais impactantes é a exclusão do cônjuge sobrevivente do rol dos herdeiros necessários. Hoje, a legislação brasileira assegura metade da herança – a chamada legítima – a um grupo de herdeiros protegidos por lei: descendentes, ascendentes e o cônjuge. Com a reforma, esse direito passaria a ser exclusivo de filhos, netos, pais e avós, deixando o cônjuge sujeito à existência de testamento ou ausência de outros herdeiros.
A mudança tem gerado debates acalorados entre juristas, tabeliães, famílias e profissionais do Direito. Segundo a advogada Anatercia Romano, especialista em Direito de Família e Sucessões, essa é uma transformação com efeitos diretos e imediatos, especialmente para casais já casados ou em união estável. “A proposta não é apenas
teórica. Se aprovada, ela muda a regra do jogo para milhões de casais, inclusive os que já vivem sob contratos e regimes de bens distintos. E a maioria sequer sabe disso”, alerta.
De acordo com o IBGE, mais de 50% dos casamentos no Brasil são realizados sob o regime da comunhão parcial de bens, onde os bens adquiridos após o casamento são compartilhados. Mas há ainda os regimes de separação total, comunhão universal e separação obrigatória – cada um com consequências diferentes em caso de morte.
O que muda para quem já está casado?
A Dra. Anatercia explica que a exclusão do cônjuge da herança obrigatória atinge todos os regimes de casamento. Veja o que muda e como se proteger:
• Comunhão Parcial de Bens:
O cônjuge continua com direito à metade dos bens adquiridos durante o casamento, como meeiro. No entanto, perde o direito automático à herança dos bens particulares do falecido, ou seja, aqueles que foram adquiridos antes do casamento ou recebidos por doação ou herança.
• Separação Total de Bens (pacto antenupcial):
O cônjuge não tem direito à meação nem à herança. Esse modelo já exclui o patrimônio comum, e, com a reforma, também excluirá o cônjuge da sucessão, a menos que haja testamento.
• Comunhão Universal de Bens:
Todos os bens são comuns. O cônjuge tem direito à metade (meação) de todo o patrimônio, mas a parte restante que hoje ele herdaria como herdeiro necessário, poderá ser destinada a outros herdeiros ou testamenteiros.
• Separação Obrigatória de Bens (maiores de 70 anos ou outros casos legais):
Atualmente, embora o regime exclua a comunhão, o STF reconhece o direito do cônjuge à herança com base na Súmula 377 do STJ. Com a reforma, o cônjuge também perderá esse direito automático.
E na união estável?
Com a união estável equiparada ao casamento, a mudança afeta diretamente milhões de brasileiros. Segundo o IBGE, mais de 36% das famílias vivem em união estável, e muitas não formalizaram sua situação legal. “A vulnerabilidade é ainda maior na união estável. Sem um contrato formal ou escritura pública, o parceiro pode ser excluído da herança mesmo antes da reforma. E agora isso se torna ainda mais urgente”, reforça a advogada.
Dados apontam para a urgência do planejamento
O aumento das disputas judiciais por herança evidencia a falta de planejamento sucessório. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que ações de inventário e partilha cresceram 18% nos últimos cinco anos. Já a Anoreg-BR revela que os testamentos aumentaram 40% entre 2019 e 2023, número que pode crescer ainda mais com a reforma.
“A proposta não é para desamparar o cônjuge, mas para devolver autonomia ao titular do patrimônio. O problema é que, se a pessoa não se planejar, pode deixar o companheiro de uma vida inteira desprotegido”, explica a especialista.
Dra. Anatercia lista os principais instrumentos que os casais devem considerar:
- Testamento público ou particular: para garantir ao cônjuge parte da herança disponível.
- Doações em vida com cláusula de usufruto ou reversão: para manter o controle dos bens.
- Holding familiar: estrutura empresarial que permite planejar a sucessão com segurança.
- Pacto antenupcial ou escritura de união estável com cláusulas sucessórias.
- Seguro de vida: proteção imediata e livre da partilha judicial.
- Direito real de habitação: ainda preservado na proposta, garante moradia ao cônjuge se o imóvel for o único da residência familiar.
- A exclusão do cônjuge do rol dos herdeiros necessários não significa abandono, mas mudança de paradigma. “A reforma não tira direitos,
ela tira a obrigatoriedade. E isso pode ser bom, desde que as pessoas assumam a responsabilidade de planejar”, conclui a advogada.
O projeto ainda passará por discussões legislativas, mas já serve como um alerta: a sucessão precisa deixar de ser tabu e se tornar pauta ativa na vida patrimonial das famílias brasileiras.